quarta-feira, 8 de agosto de 2007

Ruas do meu corpo

(Rua Fundo do Lugar - muito próximo do Adro)


Esta é também uma das muitas ruas do meu corpo. Aqui, morava o meu avô materno. A rua era dele e de todos os outros avós. Aqui, brinquei. Sem brinquedos. Não havia. Nem faziam falta. Brincávamos à mesma. A rua, só por si, (já) era um brinquedo. Nesse tempo, tínhamos uma rua para cada jogo. Para o pião, o largo das vinhas e a rua do Vale, à frente da loja do ti-Abrantes. O largo das vinhas servia também para a bilharda. O rapa (rapa, tira, põe, deixa), jogava-se detrás da Sacristia, no balcão duma casa que foi destruída para dar lugar à casa do ti-João Serrão. Ah! E a bola?... Para a bola de farrapos tínhamos a eira de cima e a eira de baixo.
Um dia, entrei em casa daquele meu avô. Não me lembro das suas feições. Teria cabelo branco e cara de avô, certamente… Mas, sei que as costas das suas mãos eram engelhadas e de veias salientes. Dizia que era do raio da idade. Da idade? Que raio era isso? Não acreditei. Hoje… acredito.
Ele vivia só, a minha avó era só uma imagem, no tempo. Entrei e fui logo para a cozinha. Na rua molinhava e os homens esfregavam as mãos e diziam que estava um frio de rachar. O Inverno aproximava-se do fim, mas ainda era Inverno – diziam. Da lareira aberta e bem acesa o fumo subia e escapava-se pelas fisgas do caniço, já sem castanhas. A chama do lume crepitava com estrondo e pequenas lascas fumegantes de carcódia esvoaçavam pelo pequeno espaço da cozinha. No ar, além do cheiro a fumo, havia também o cheiro intensamente conhecido do feijão com couves. Na panela de ferro ligeiramente destapada o caldo fervia. Das correntes que do caniço desciam até à lareira pendiam as trempes que seguravam uma frigideira onde uma fritada de porco recebia os temperos finais e libertava um cheirinho que até me fazia cócegas na barriga!
Na hora do comer, o meu avô deitou um pouco de azeite cru no prato do caldo – para lhe dar mais sabor, dizia. Da pequena boca da almotolia escorriam lentamente umas gotas de azeite. Meu avô elevou a almotolia ao nível da boca e sorveu aquele azeite... Do meu olhar interrogativo (?), ele terá visto uma pergunta e disse: “Tonito, não se pode perder nada”.

– Acabava de receber a primeira lição de economia!...

15 comentários:

Anónimo disse...

Temos poeta!
Para quando um livro de recordações? Fico na expectativa!
Um grande Abraço

Pinam

zef disse...

Gosto. Sobretudo de as lembranças serem assim: "Esta é também uma das muitas ruas do meu corpo".

E a dança das carcódias como atirariam a sombra do avô e da almotolia para a parede iluminada pela lareira?
Um abraço.

Catarina disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
sobralfilho disse...

Pinam,

“Eu sei que tu sabes que eu sei” que não sou, nem nunca serei poeta – “Muitos são os chamados, mas poucos os escolhidos”…

Um abraço e boas músicas aí nos lugares de Franz Liszt!

sobralfilho disse...

Zef,

Se houvesse sombras… projectar-se-iam para além das paredes…

Um abraço

Anónimo disse...

Mem�rias vivas e sentidas, t�o intensas que at� d�i.
Pode n�o querer ser poeta, mas prosador � de certeza.

sobralfilho disse...

mariita,
Também não serei prosador...
São simplesmente resquícios dum outro tempo (em que pensava ser também capaz de mudar o Mundo.

Anónimo disse...

Quem o lê não pensa assim... e, meu caro, se não é possível mudar o mundo todo, já o mudou um bocadinho por que está de certeza melhor com todas estas lições vida, ternura e saudade.

Anónimo disse...

Sobralfilho foi com surpresa e satisfação que entrei no teu blog.Estava admirado devido á tua "ausência" mas agora esta tudo explicado. Recebe desde já um grande abraço de felicitações.
Quanto a este post, sinto que ele é também um pouco meu, porque também nasci por aí perto, e tal como tu também sob o signo de Touro apenas 11 anos depois de ti.
a tua prosa está de primeira...gosto muito...dá uns certos ares ao grande Miguel Torga . Também tenho qualquer coisa em rascunho para escrever sobre a m/ rua e que afinal é a tua, onde se fala do jogo do prego,da bilharda e do pião.Da cotcha, da rilha e do saltivão.
Já estás nos m/ favoritos...tchau.

sobralfilho disse...

Olá, Virgílio Neves,
Eu não me ausentei,nem me ausento do nosso blogue. Comentei ultimamente o Post de 7/8, "É já Quinta-Feira" (o da caminhada).
E continuarei...
Fico contente à espera que fales dos teus jogos... Saltivão? Não estou a ver!...

Um abraço

Anónimo disse...

É o jogo do eixo em outras terras.
Aquele em que uns garotos se curvam para outros em corrida lhe saltarem por cima ,apoiando ou não as mãos costas dos outros .O pior era quando, para atrapalhar, o curvado se erguia de repente e provocava uns trambolhões .

Anónimo disse...

Sim. Os olhos dos poetas e prosadores, como os do Sobralfilho penetram nas sombras e alcançam muito para além dos lugares mais escondidos e escuros...Assim há sempre luz. Bonita descrição. E verdadeira. São momentos tal qual como também eu os vivi, na minha meninice. Relembrei-os, pensando no amanhã. Posso ainda dizer que aquela era também uma das minhas ruas... Obrigado.

sobralfilho disse...

Oi, Virgílio Neves,
Pronto. Já estou a ver...
Também se jogava no meu tempo.

Um abraço

sobralfilho disse...

Olá, Lob´s
Partilhamos então a mesma Rua...
(fico feliz)
Será que te estou a ver a caminho do Paúl, carregando recados?

Um abraço

Anónimo disse...

Afinal todas as ruas são nossas.Esta particularmente era a rua de todos os que a caminho da Escola aproveitavam o tempo para subrepticiamente apedrejarem os marrecos da tia Benta ,como represália pelas bolas que nos destruia na Eira, ou pelas incursões ao Alambique do Ti Pereira Velho que nos presentiava com umas pingas de Chanfrana que nos sabia a pouco.Sim esta também foi uma das minhas ruas