sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

O MATATEU!



(Sanatório das Penhas da Saúde
Foto gentilmente cedida pela Sra. Francelina Alves, filha de José Francisco de Amorim)



 Quando o galo da vizinha, tiá Antónia, cantou pela primeira vez, nesse dia, aí pelas quatro horas da madrugada, já o homem fazia a barba. Limpou a espuma do sabão e pêlos cortados, que escorria da navalha a um recorte de papel de jornal, passou a navalha novamente no assentador para cortar aqueles pêlos reguilas que na ponta do queixo teimavam em chatear e preparou-se para finalizar o corte: Olhou a sua cara no espelho. Sorriu. O corte parecia-lhe perfeito. Com ambas as mãos lavou a cara e, com a pela ainda húmida, massajou-a suavemente com a pedra-hume. Um ligeiro ardor percorreu toda a superfície da pele acabada de escanhoar (está a desinfectar, pensou). Depois de vestido, olhou mais uma vez o espelho para ajeitar o nó da gravata e saiu para a Rua. O céu estava limpo. A Lua vaidosa com a sua luz intensa de Lua-cheia iluminava-lhe o caminho. A Aldeia não tinha luz eléctrica, nem estrada. Em passo apressado, sai da povoação e começa a percorrer os cerca de dez quilómetros que a separam de Casegas. Daqui, partirá a “camioneta de carrera”, Casegas - Covilhã. Quando o homem, João, entra na camioneta o motor desta está em marcha e parece que soluça (àquela hora da manhã o tempo ainda está frio e há humidade no ar). Instantes depois, a camioneta inicia o seu percurso e após passagem pelo Ourondo e Paúl, a lotação vai quase esgotada. Mesmo com o barulho produzido pela conversa dos passageiros, João, dormita. Quando a camioneta chega ao destino, Garagem de São João de Malta, o Sol, ainda não nasceu. Numa tasca situada na Rua Comendador Mendes Veiga, em frente duma tipografia onde era impresso o Jornal “Notícias da Covilhã”, come apressadamente uma sandes. E pensa: “Despacha-te, João”. E João sai para a rua e começa a percorrer o caminho que o levará ao Sanatório das Penhas da Saúde. Sobe, deixa para trás o sítio do Calvário, Hospital e Bairro da Biquinha. Aqui, respira fundo e o seu olhar abarca por instantes o manto verde de pinheiro bravo que se estende por toda aquela encosta da Serra. E embrenha-se na floresta. A vereda está seguida, aquele trilho é também utilizado aos fins-de-semana pelos covilhanenses que buscam a serenidade e o descanso na montanha, depois duma semana de árduo trabalho. E de repente, a frase “O seu filho é um rebelde” toma de assalto o seu pensamento. A carta do Dr. Miguel de Vasconcelos assim o dizia.

- “Rebelde” o meu filho?
- Não, há certamente engano.
- É tão franzino.
- Bem, logo vejo. “O que for, soará”

E continua a subir. A casa do Dr. Martins já está à vista, ali, perto da estrada. E João avança com mais ímpeto. Mas… num ápice eis que aparece o Matateu e o seu fiel companheiro “um Serra de Estrela” sem nome, enorme e peludo. O Matateu era um cão totalmente vestido de negro, à excepção duma lista branca nas patas dianteiras, rafeiro, de porte mediano. Era o líder. O Serra de Estrela, “sem-nome”, vaidoso com a sua coleira de picos, para fazer frente às raposas e lobos que se aproximassem dos porcos, dos patos-marrecos e dos galináceos, nas instalações existentes nas traseiras do Sanatório, obedecia-lhe. O homem, João, que não contava com aquela dupla canina a barrar-lhe o caminho, sentiu medo. Fragilizado, por momentos, pela íngreme subida, estava exausto. Ficou quieto e esperou. O Matateu continuadamente a ladrar. O “sem- mome” olhava somente e de vez em quando lá soltava um ladrido. Por sorte, o Bernardino “do Paúl”, empregado do Sanatório, e irmão do tratador dos porcos e galináceos, sai das traseiras do enorme edifício e dirige-se à casa do Dr. Martins. E depara-se com aquele cenário. Dá um assobio aos cães que prontamente deixam o homem, João, em paz e sossego. João, ainda visivelmente agastado, cumprimenta e agradece ao Bernardino, dizendo-lhe ao que vem. Depois, calmamente vai à sua vida: Instantes depois abraça fortemente o seu filho, Tonito. E conta-lhe o que acontecera pouco tempo antes.

- Ó meu pai, para a outra vez que lhe surgir no caminho o Matateu, tussa, faça-de-conta que tem tosse. E terá no Matateu “um amigo”.

(O Matateu nunca mais lhe barrou o caminho. E algumas vezes teve direito a um bocadito de presunto.)

                               

5 comentários:

virgilio neves disse...

Tó, deliciei-me com as fotos do barroco de Carvalho.Tenho boas recordações desse caminho.
Agora falando do "estória" do Matateu,gostei tanto que me fizeste lembrar os contos do Miguel Torga
PARABÉNS.

Anónimo disse...

Partilho da opinião do Virgílio Neves e não vamos deixar cair os bons contadores de "estórias" como o amigo António Silva.
De facto ,o território sobralense e os seus habitantes são ricos em episódios de uma vida severa mas feliz.
Fiquei estarrecido...
Um abraço a ambos.
fs

sobralfilho disse...

Virgílio Neves e FS,

Neste nosso caminhar, na bruma da nossa memória ainda encontramos o encanto desses caminhos que nos marcaram.

Quanto à(s) estória(s) são pedaços da minha adolscência que teimam ainda em aparecer.

zef disse...

Final extraordinário, Sobralfilho!

Desenvolves uma história que parece ser pouco mais do que a ida do pai a querer perceber qualquer coisa a que não dava grande importância, sem qualquer indício das percepções que o filho já tinha e que o médico não soube perceber.
O final, pesado, de quase auto-ironia num adolescente!
Um murro violento em quem lê distraído.
Extraordinária forma de contar (e não estou a fazer de conta)!

Um abraço

sobralfilho disse...

Zef,

Um abraço