sexta-feira, 19 de outubro de 2007

Inquéritos Pombalinos (continuação)


Voltemos à serra da Estrela.
Chamou-se antigamente Monte Hermínio (Arminio na grafia dos párocos da Covilhã) como escreve o cura da Erada, que se socorre para as suas respostas do poema Viriato Trágico[1], ou Montes Hermínios, como melhor expressa o prior do Teixoso.
Várias hipóteses se propõem para a moderna denominação:
1ª - (apresentada pelo prior do Teixoso) O seu nome originar-se-ia da « sua alta eminência parecer que desafia as estrelas ».
2ª - (avançada pelo mesmo e párocos da Covilhã) Um grande penhasco cuja superfície se encontra raiada imitando raios de luz de uma estrela terá levado as pessoas a colocarem-lhe tal nome[2].
3ª - (dos párocos da vila) « agora se chama Estrella em razam de huma estrella que sobre ella se ve nascer e se avista das partes do Poente, e Norte ».
4ª - (que os párocos da Covilhã foram buscar à tradição e a livros antigos « que tratam das couzas de Roma ») Derivaria de nos tempos pagãos aí se adorar o penhasco referido na hipótese segunda, ou a Estrela da Alva.
Como vemos, hipóteses suficientes para cada um escolher a que melhor lhe agrade, caso não queira avançar com uma própria[3]
Os inquiridos propõem para começo da Serra os montes que circundam a cidade da Guarda. Mas enquanto em Unhais, Covilhã e Aldeia de Carvalho lhe põem o término junto a Góis (18 a 20 léguas), no Teixoso e Erada dão-lhe por fim o Promontório da Lua (52 léguas para o prior do Teixoso, 25 para o da Erada, que cita o autor do Viriato Trágico).
Numa extensão tão grande é natural a Serra dividir-se em vários braços. Para o Norte, e pelo que respeita ao concelho da Covilhã, temos uma ramificação que se alonga por duas léguas, desde o Zêzere, junto à ponte de Valhelhas, até ao Teixoso. Chama-se a serra do Sarzedo. Seus montes tomam vários nomes. A Norte do Sarzedo encontra-se o Castelo Redadeiro, que se perfila por meia légua, seguindo-se a serra do Aldeão com igual comprimento.
Para o Sul temos o monte de S. Gião (de uma capela deste santo), que se prolonga por uma légua até à cabeça do Mouro.
Esta serra é conhecida na Aldeia do Mato pelo nome de Barreiros Brancos e em Orjais como Cabeço Gordo.
É de clima frio e as encostas produzem castanhas, centeio, cerejas e ginjas. Nela pastoreia-se gado miúdo e poderão caçar-se javalis, corças, coelhos e perdizes.
No sudoeste do concelho verificaram os párocos a existência de outro braço da Estrela, o mais importante no dizer do cura de Unhais, que lhe dá, das Pedras Lavradas a Góis, uma longitude de nove léguas.
Esta serra do Açor, da qual só pequena parte está no concelho da Covilhã, toma vários nomes: Entre Capelas, Castanheira, Colcorinho, Serra da Mourízia e Pedras Lavradas.
Na Estrela nascem vários rios: Zêzere, Alva, Ceira e Mondego. Do Zêzere falaremos em capítulo próprio. Trataremos agora dos outros.
O Alva nasce na lagoa Comprida e, após passagem por Avô e Coja, desagua no Mondego junto à ponte de Morcela.
O Ceira nasce no Açor, atravessa Góis e vai unir-se ao Mondego um pouco acima de Coimbra.
O Mondego nasce num penhasco perto das Penhas Douradas e tem sua foz no porto de Buarcos.
No perímetro da serra encontram-se várias lagoas[4].
A lagoa Escura tem forma circular e medirá de largo 300 passos (360 de perímetro, afirma o cura da Erada) Suas águas são claras na margem e negras no centro devido à profundidade[5].
Um paroquiano do Teixoso, perito em natação, mergulhou e viu areias muito brancas às quais não pôde chegar. A elas seguia-se « horrenda escuridão (...) causada da immensa profundidade do centro ». Atravessando a lagoa do nascente ao poente achou a água demasiado fria, talvez pela profundeza ou pela sombra de um alto penhasco.
Foi feito memorável esta travessia, não só pela tentativa de encontrar uma explicação racional para as dificuldades, mas também por um pastor com mais de 50 anos afirmar nunca ter visto ou ouvido dizer que alguém atravessasse alguma vez a lagoa.
Em altura de vendavais fortes as águas fazem um estrondo tão grande que se ouve a 10 / 12 léguas!
Não tem criação de peixe nem transborda no Verão, o que só acontece em épocas de chuva e degelo, indo o remanescente para a lagoa Comprida.
Escreve o cura da Erada que nela se encontraram em tempos antigos restos de um navio, o que levaria a supor a comunicação com o mar.
A um quarto de légua da lagoa Escura encontra-se a Comprida. Medindo três quartos de légua (500 passos para o cura da Erada), nela tem seu começo o rio Alva.
No meio da serra encontra-se um vale com meia légua de comprido por um quarto de largo, onde corre pequeno ribeiro. Este vale, de férteis pastos, recebeu o nome de Nave de Santo António da Argenceira, onde a freguesia de S. Pedro de Manteigas possuía uma capela com a invocação do popular santo lisboeta.
Aqui se reúnem os pastores a 24 de Julho, ouvindo missa e sermão. Após as cerimónias religiosas, mediam forças no jogo da barra com um calhau redondo, cor de ferro, difícil de levantar por homem de medianas forças. O vencedor era premiado com um grande pão, a fogaça.
Neste vale tem suas bases o Espinhaço do Cão, que se levanta por três quartos de légua ladeando um « profundo despenhadouro a que chamão os Covões », onde nasce a ribeira de Unhais.
Este maciço só dificilmente permitia a passagem a pé.
A Norte do Espinhaço do Cão erguem-se os Cântaros: Gordo, Magro, e Chão ou Raso. O mais alto é o do meio. Nele as águias fazem seus ninhos. Entre os Cântaros Gordo e Magro fica uma azinhaga, a Rua dos Mercadores, com larguras de quinze a trinta palmos. O informador do pároco do Teixoso atravessou-a com seis companheiros, passando muitos perigos devido aos precipícios.
O terceiro Cântaro fica desviado quatrocentos passos ao Norte.
O nome dos Cântaros não se explica por ali haver um cântaro para saciar a sede dos moradores de Aldeia do Carvalho quando atravessavam a serra. Aliás, essa previdência era desnecessária. Não só pouca gente utilizaria tal caminho, como a Estrela é fértil em boas nascentes.
Foram assim chamados devido à forma do Cântaro Magro que do meio para cima imita tal vasilhame, além do local ser farto em águas. .
Na depressão que se encontra atrás dos Cântaros se ajunta a neve que refresca no Verão « o calor da mais populosa cidade do Orbe Catholico », na pitoresca referência do padre Vicente de Oliveira Durão à capital do reino.
A serra é incultivável devido à sua orografia e clima frigidíssimo. Mas no Verão os seus pastos verdejantes são aproveitados para a pastorícia.
São também procuradas pelos boticários as suas ervas medicinais, com particular relevo para a argençana, ou genciana, cocleária, com propriedades antiescorbúticas, zimbro e maná, suco resinoso retirado de algumas plantas. Quanto à genciana, dizem os párocos covilhanenses que « todos os malles sana so hum damna ».
Os mesmos párocos referem como curiosidade uma ribeira de águas frias que só admitem trutas e dizem serem boas para fabricar papel.
Na serra coexistem vários animais de caça : águias, bufos, açores, perdizes, coelhos, javalis e corças.
Existem duas fontes de água sulfurosa procuradas pelos doentes. As caldas de Manteigas tinham maior volume de água, que era quente; as de Unhais eram mais sulfurosas.

[1] - De Brás Garcia de Mascarenhas, cuja 1ª edição, única na data do inquérito ocorrera em 1699
[2] - O penhasco já desaparecera em 1758.
[3] - Considerando que André de Resende (C. 1500-1573) afirma (de An tiquitatibus Lusitaniae, Évora, 1593) ser recente a atribuição do nome de Estrela aos Montes Hermínios, podemos supor que houve um deslocamento daquele topónimo que, antigamente, seria dado à serra do Açor. Isso mesmo se depreende de documentos dos primei ros reis afonsinos
[4] - A descrição da Serra baseia-se no relato do prior do Teixoso, que mostrou estar melhor informado.
[5] - Tem um perímetro de 400 metros e uma profundidade de 14 a 16. História da Covilhã - José Aires da Silva.
Por Gabriel dos Santos
(continua)

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