sexta-feira, 10 de julho de 2009

A ALDEIA, AS NOITES DE ROLHO E SUECA NA TASCA Por Carlos Ortil

- Da autoria de Carlos Ortil, este texto, publicado no Suplemento Literário do Jornal Diário de Lisboa "O Juvenil", em 28 de Outubro de 1969, é o último do meu arquivo -

[Juntos palmilhamos, na pastorícia, caminhos e veredas. O mundo findava-se (parecia) logo ali. Na moita, na carqueja, de roçadoura na mão. E as cabras. As cabras sabiam muito bem onde estava o trepolo e o centeio de Abril. E naquele dia longínquo de Abril, a conversa, na Corga da Ursa, junto ao caminho da Tejosa de Cima, estaria no cume. A inventar outros caminhos, outros mapas. A sonhar ao sol... O tempo, sempre o tempo, fugiu-nos. As cabras do Tó Paiva também. Quando a conversa desceu, fomos em busca das cabras e ei-las… sorridentes e felizes na boutcha do centeio do Ti Manel Tiago, na bifurcação do caminho Sobral, Tejosa, Fojo. À noitinha, o Tó Paiva ouviu das boas… da Tiá Lurdes.

A vida deu mais uns solavancos e eis o Tó, mais velho, quase um homem, no Porto. As sortes vinham perto. Outros trilhos para trilhar. A opção a impor-se: “A deserção organizada” em marcha. Consuma-se a fuga. O Tó tem agora outras montanhas. Outros sonhos. A PIDE-DGS ronda. A sua porta. A Tiá Lurdes previamente rasgara a produção literária do Carlos Ortil (prosa e poemas) e artística (desenhos e pinturas) de A.Paiva].

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A ALDEIA, AS NOITES DE ROLHO E SUECA NA TASCA

– Por Carlos Ortil

talvez não saibam o que é o inverno na aldeia. mas hoje não lhes vou falar das ruas lamacentas, onde e a água corre pelas valetas inclinadas. muito menos do vento assobiando sobre os telhados de ardósia. digo-lhes simplesmente da aldeia. duas ou três tascas cheias de homens, onde vivi quatro meses molhados. a gastar-me. a morrer no rosto quotidiano das coisas. dos homens que pela tardinha regressavam do campo. os fatos encharcados e duas pregas na testa, em sinal de protesto contra o tempo. costumava então ficar à entrada do povo. à porta da tasca do ti machado. que por ter azulejos na parede lhe puseram o nome de café mas onde apenas se vendiam copos de vinho grandes. ali comecei a conhecer a aldeia. ali compreendi o peso da enxada, nas mãos calejadas, apoiadas no balcão de madeira. ou cravadas nos copos de vinho com uma leve camada de tarro no fundo. ali compreendi as vozes secas daquela gente, junto ao balcão "ó machado bota aí uma chícara dela".

foi nesse tempo que conheci o simão. era um rapaz a quem a sorte também não ajudava. o simão. tinha acabado um curso e para ali ficara a escrever cartas às empresas a gastar-se profundamente nos dias que mediavam as respostas. sempre "não". tal como eu, era contrário às cunhas. embora necessárias.

costumávamos então matar o tempo com longas conversas. à noite. longas histórias de nós próprios. foi por isso que o tempo chegou mesmo a morrer-nos entre os dedos e nas mãos ficaram horas de frio, com palavras. palavras, não. vidas. Ainda guardo aqui o tom triste que as caracterizava. triste e gasto. o tom. dele digo a amizade que nos une.

os dias passávamo-los de rua em rua. lentamente sentíamos as pessoas nos ossos, nos olhos a paisagem actuava lentamente, das janelas as bocas falavam. do povo, falavam. eram bocas desde há muito tempo abertas. em todo o lado abertas. de nós diziam a boa vida que levávamos e a irritação que descontraidamente provocávamos. abertas as bocas nas janelas «agora os novos, mal saem da escola vão logo estudar. depois vêm para aí a falar à moda, a vestir à moda. e passam o tempo pela rua de mãos nos bolsos. feitos senhores. se fossem do nosso tempo, em que a gente nem vagar tinha para comer, havia de se lhes acabar a mania das mãos lavadas e da calça vincada».

quotidianamente desabafavam sobre nós. tudo inútil. porque tudo morria no mar da nossa indiferença. contudo os desabafos também eram do nosso tempo.

a noite era difícil na aldeia. difícil para quem estava habituado a uma vida nocturna. desalmadamente desprendida de tudo. a vida. a minha vida. eu a sofri. eu a sofro, mas dizia eu que, na aldeia, a noite era difícil. e era. não havia um café para morrer urna bocado numa bica ou para parar os olhos num «ecran». as ruas eram impossíveis. escuras. esburacadas. era depois da ceia que nos juntávamos na tasca do ti joão romão. uma tasca antiga. das mais antigas da aldeia.

a minha mãe barafustava por todos os cantos quando me via sair. para ela os serões terminavam em casa às dez horas. por isso barafustava. «seus tonhos. olha que até às desoras na rua, não a andais a fazer boa. não. mas hoje, vós nem tendes amor à família, nem a nada». e eu saía. o único lugar era a tasca. talvez verdadeiro. ali se juntava habitualmente um grupo de homens a passar o serão. ali se jogava a sueca, o rolho, o dominó, e aquela gente jogava. jogava, e falava da vida. do campo. da aldeia. as caras, as caras começavam a ser-nos familiares. na sueca. o zé paulo, o ti augusto romão, o ti tomé e o aIberto da trindade eram as presenças habituais na banca. o zé paulo era novo. no rosto traços oblíquos davam-lhe um aspecto duro. discutia muito as jogadas mas «segurava bem o jogo» dizia o ti augusto romão. este era o dono da tasca. perdia o controle do negócio quando se punha a jogar. e jogava. às vezes irritava-se com o ti tomé. de minuto a minuto. «bota lá um copo dele ó augusto romão». o ti tomé era o latoeiro da aldeia. duas pregas na testa marcavam-lhe um ar antipático. mas era simples. popular. falava dele. «aqui em volta não há um latoeiro que me bote água nas unhas». o alberto da trindade era conhecido pela dureza com que tratava os colegas de jogo. «raio não tomais atenção às jogadas».sempre o conheci a discutir sueca.

no rolho os parceiros variavam constantemente. eu e o simão às vezes Iá pegávamos nas «patacas» e piscávamos o olho para o pino que ficava junto ao balcão. o ponto de partida era a porta. o valdemar e o norberto jogavam bem. por ali passavam as tardes e as noites para se divertirem um pouco (diziam). o ti joão andré era um solteirão que habitualmente ali estava caído. dedicava-se sobretudo a comentar as jogadas. desprendia ironicamente dos lábios um sorriso trocista. «vós tendes a mania que estudais. que sabeis. mas aqui não arranhais nada». repetia constantemente. e ria. ria. gostava de nos ver irritados, por isso não desperdiçava qualquer oportunidade. «ó valdemar põe-lhes lá uma muda. olha a da orelha, por exemplo, se os queres ver às aranhas». interrompia pausadamente.

para a sueca costumávamos nós desafiar os parceiros. o simão jogava bem, aí como comentador tínhamos então o ti zé tomé (irmão do ti tomé). era um velhote onde vida tinha deixado no rosto uma estrada difícil. estava gasto e cansado. das cartas, sabia todos os truques. piscava o olho por baixo do chapéu. «ó tonho aplica aí o truque dos sinais para o teu parceiro que eles disso não percebem nada». gostava de comandar o ritmo das bebidas, «bota lá vinho aqui para esta malta ó augusto romão». dizia com voz rouca e um cigarro apagado nos lábios.

ao fundo. num canto. «este ano vai mal para o renovo». diziam os especializados em agricultura. «se assim continua vamos ter um ano de fome, quer a gente trabalhar e nem pode, nem a terra produz, assim encharcada.»

os serões repetiam-se identicamente. noite por noite. a chuva continuava a castigar os homens e a aldeia. era um inverno duro e longo. ah! mas desculpem, hoje não lhes queria falar do Inverno. mas às vezes um homem fica para aqui com as ideias a saltarem das paredes e dos móveis e sente vontade as alinhar. e alinha.

4 comentários:

Anónimo disse...

O sítio da botcha de centeio não era no Torgalão?

virgílio neves disse...

Cenas iguais vivi na minha taberna (ti Galhetas) os personagens eram outros mas as conversas repetiam-se. O Ti Reinaldo lia para todos o Diário Popular, e não se jogavam cartas por serem menores os ajudantes do taberneiro. (eu)...
as primeiras imagens que vi na TV FOI NA TABERNA DOS TI ROMÕES. Domingo,27/5/67, 16h45m

sobralfilho disse...

Anónimo,
Penso que sim. Não tenho a certeza.

sobralfilho disse...

virgílio neves,

A "tua" taberna era uma das mais castiças. Pequena, sim!... Mas, com bom vinho...

Amiúde se ouvia dizer "Ó Alfredo Galhetas deita lá um copo dele - desse do Ti João Pereira". Os homens tb jogavam o rolho e como a Escola era ali perto- nós (a garotada) jogávamos ao pião.