sábado, 10 de agosto de 2013

O meu avô




(É tão-somente uma garrafa das pequenas. Quinta dos Currais. Catorze graus. Estes rapazes também sabem fazer vinho. Que pomada, avô! )
O meu avô

Era um sábio.
O meu avô. Nasceu no último quartel do Séc. XIX, na sua aldeia, que é também a minha, não sabia ler e nunca terá visto o Mar! Mas, ele sabia que o Sol se escondia no “Mar alto e profundo”, todos os dias. Num lugar chamado Poente. “Olha, além é o Nascente! Onde nasce o Sol, vai-se levantando e, por volta do meio-dia, está aqui por cima de nós, às páginas tantas, começa lentamente a baixar até que à tardinha se esconde novamente no Mar,” Eu começava a sentir que o meu avô era um grande, grande amigo do Sol. Estivesse onde estivesse, mal o primeiro raio solar lhe batesse no rosto, respeitosamente tirava o chapéu, fazia uma prece e terminava com o sinal da cruz. De todas as letras do alfabeto, só sabia escrever a letra “M” (de Marques) que gravava nos seus cortiços que tinha na Serra do Açor, mais propriamente no Vale dos Tortos.
Quando, com os seus amigos, a conversa girava à volta da Terra e se levantava a dúvida se era o Sol ou a Terra que andava, logo a sabedoria do meu avô sobressaía: “Cá para mim, a Terra está parada. O Sol é que anda e todos os dias vemos isso”. Se alguns amigos o contradiziam, de imediato os desafiava para uma aposta: “Não, eu até aposto, temos aqui esta pedra, com um martelo de picos, fazemos-lhe um sinal virado para as águas-ceiras, se amanhã estiver virado para a Portela, ganhais. Vamos a apostar? Aposto a um cântaro de vinho”. Claro, nestas condições, ninguém se atrevia a apostar. Um cântaro de vinho era muito vinho. E, assim, ficava convencido do seu saber...
Da Lua, conhecia-lhe todos os quartos. Relacionava-os com as sementeiras e colheitas e com a trasfega do vinho. E repetia-se, naquelas sombras lunares... Aporfiava que representavam um homem com um molho de silvas às costas que Deus castigara por ter trabalhado em dia de Domingo.
Lá pelos serões adiante, enquanto saboreávamos o champurrião (Chá de pimpinela, mel e aguardente), vinham ter connosco o “Barba Azul”, “As noites de Lamego”, o “Conde Da Alemanha” que dormia com a condessa. Hum… ou seria com a Rainha! Já não sei. Então, o sono aproveitava a minha fraqueza e pumba: Adormecia-me.
Com as uvas “mortágua” da fojasteira, Vale Torno, o rufete da Tejosa, com o tinta-fina (para dar cor) de Carvalho, fazias o teu vinho que, depois de estagiar na pipa grande, cujo tarro esfregavas com pedaços de marmelo, obtinhas uma pomada avidamente disputada pelos donos das tabernas de então, principalmente pelo ti-João Diogo (pai do Maurício).
Ei, avô! Ainda me lembro: Quando ias ao Gondufo palrar com o teu sobrinho, por afinidade, António Gramaça e bebias uns copos, no regresso, pelo cair da tarde, ao chegares aos medronheiros do Cide e o vinho começava a fazer efeito, o caminho tornava-se demasiado estreito, e sem querer encostavas-te aos pinheiros e as tijelas da resina sujavam-te as calças domingueiras, outras vezes caías e…dizias que era o diabo que te empurrava…
Eu sei, avô, ainda te vejo como um sábio!
 

4 comentários:

Anónimo disse...

Um belíssimo texto onde ressalta a muita ternura por um repositório de sabedoria como eram os nossos avós de antanho e que muitos vaidosos de hoje teimam em chamar de analfabetos. Saber de uma vida construída, ainda muitas vezes sem fundamento científico.
Gabriel

Anónimo disse...

Amigo Antonio,

Maravilhoso texto, uma pérola dedicada à memoria dos nossos antepassados. Sobretudo continua, como ja o tens feito, a nos presentear assim à maneira de Guerra Junqueiro.

"Ai ha quantos anos que eu parti chorando
Deste meu saudoso e carinhoso lar
Foi ha vinte? Ha trinta? Nem eu ja sei quando!
Minha velha ama que me estas fitando
Canta-me cantigas para me eu lembrar."

Obrigado por me teres feito lembrar muitas dessas pessoas (avôs) e visitar através do pensamento todos esses sitios e lugares do nosso torrâo natal.
L.

Anónimo disse...

Este excelente texto faz-me imaginar como seriam os meus avôs nessa época, avôs que não conheci (só conheci uma avó) pois penso que não diferiam muito deste texto.
Parabéns por ressaltar a sabedoria que eles também conheciam.
Jacinta

famel disse...

Belíssimo texto. Mantém as memórias vivas e faz sentir que o seu avô está aqui connosco.