domingo, 2 de setembro de 2007

Pela Serra de Carvalho…


Pela Serra de Carvalho, passava sempre aquele homem e o seu moço. O homem era ou dizia-se cego. Por isso, tinha um moço. Era o guia, o seu anjo da guarda, o seu cúmplice. Para caminhar, o homem que se dizia cego servia-se dum cajado. Ele pegava numa ponta o moço na outra e, assim, em fila, seguiam caminho.
Este homem cego era visto muitas vezes no Sobral, principalmente quando os lagares estavam a andar. Além de cego, dizia-se também pobre. E pedia. Pedia sempre azeite. Cantarolando de porta em porta: “Dêem-me uma beirinha de azeite para temperar o caldinho”…Muitas vezes ouvia: “Que Nosso Senhor o ajude”, ao que ele respondia com má cara: “Com estas ajudas hei-de ir bem”. Arrogante e selectivo não aceitava outro bem. Dinheiro não havia. Mas, milho, feijão, centeio, sim. Ele é que não aceitava. Só azeite!
No Sobral uns diziam que era de Balocas, outros que era de mais longe e que era rico, no mínimo remediado. E havia mesmo quem dissesse que aquele homem era o “ceguinho de luriga”.
Um dia bem perto do Natal, as nuvens ameaçavam-nos com a chuva prestes a cair, o homem que se dizia cego e o seu moço vindos do Sobral regressavam a detrás de Serra, como sempre, pelo Caminho de Carvalho. Aproximavam-se do Barroco das Rasas. Ao ouvir o tropel, o meu pai e o nosso vizinho Rafael que cavaqueavam na berma do caminho, encobertos pelas oliveiras do Ti-Zé Abílio, calaram-se. Eu, miúdo, já estava calado há muito – não me metia na conversa de homens… Entretanto, o homem que se dizia cego, terá “olhado” para a Serra de Carvalho e disse para o seu criado “temos de nos apressar já está a chover na Serra”. A Serra era já ali… a um quarto de légua, começava-se a subir até à Colada da Teixeira. O moço ao dar-se conta da nossa presença, tossiu duma maneira esquisita. O homem de imediato mudou de postura, calou-se e ao passarem por nós nenhum deu a salvação, como era seu hábito.
Pouco tempo depois, começou a chover de grande…

6 comentários:

Anónimo disse...

"Em terra de cego..." mas aqui, quase se pode dizer que o provérbio é um pouco ao contrário e certamente com bons resultados para o espertalhão do falsário!
Mais uma pérola das muitas que ainda haverá para nos dar a conhecer. Bem-haja Sobralfilho!

Anónimo disse...

O prometido é devido.Cá estou metendo o bedelho no teu(deixa-me chamar-lhe nosso) blog.Quando digo nosso quero referir-me a estas e outras histórias que partilhámos e que tu tao bem reavivas.Esta lufada de ar fresco nas memórias do tempo, não foi assim à tanto tempo que aconteceram éum bálsamo que nos reconforta e estimula para manter vivos os traços que nos unem apesar das distâncias.

Anónimo disse...

...Pois é! Esta história é quase real e espelha a verdade dos acontecimentos de tempos idos, mas não muito distantes. Aconteceram na minha infância e a descrição do sobralfilho é tal qual como os meus pais nos relatavam, as aventuras daqueles que, passando-se por nada terem, aproveitavam-se, daqueles que verdadeiramente, menos tinham e que, de coração aberto repartiam com os tais, o que certamente no outro dia ia faltar na mesa... Até me lembro, conforme meu pai me contou, do "desabafo" do tal "cegueta"... "Não sei como vai ser este ano, para pagar aos obreiros, pois a safra foi fraca"!
Parece que de pobre não tinham nada e na sua terra, quem parecia não ter um olho, era rei. E parece que também o quiseram ser nas terras vizinhas, enganando dessa maneira as almas caridosas que eram apanhadas no embuste.
E ainda, conta quem viu, que, quando de volta à sua terra, ao anoitecer, depois de passarem o alto da Cabrieira, era vê-los a correr, já sem bangala e sem escosto, pela vereda fora, para não chegarem muito noite ao "seu reino" É caso para dizer: E esta, hein!

Anónimo disse...

Parece-me que os vi passar algumas vezes lá no alto de Carvalho-Colada Teixeira. Assim como ranchos de resineiros e mineiros de regresso a casa ao fim de semana. Como ainda não tinha relógio se calhar ate´ cheguei a perguntar as horas ao cego.lol, lol, lol.

sobralfilho disse...

Mariita, lob's e Virgílio,

E lá diz outro provérbio "apanha-se mais depressa um mentiroso que um coxo"...
E o homem terá deixado de ser visto, no Sobral, ou pela ordem natural das coisas ou pelas que fez...

sobralfilho disse...

F.Paulo,

E fazes muito bem...
O blogue continua livre e libertário!
- Reavivando memórias: Esta dos marrecos da tiá Benta!... (eras dos frescos...)