terça-feira, 16 de setembro de 2008

EU PORÉM INSISTO NO SILÊNCIO DOS CORPOS

e é como se despreocupadamente sugasse o sangue ou pus de uma ferida aberta no peito. necessariamente aspirasse o fumo de um cigarro, de um cigarro qualquer, o fumo a principal razão é o fumo. depois ficasse para aqui a compreender tudo. absolutamente tudo no silêncio. até à última gota de sangue ou veneno. entrar na memória das coisas e narrar-lhes a história. demasiado longa. demasiado gasta. é pois preferível reflectir, passear a memória abertamente pelos anos. depois pegar num pincel. nervosamente introduzi-lo na tinta. mexer. remexer. até a força da cor percorrer com urgência o braço. então fazê-lo deslizar firmemente na tela. com raiva. com ódio, com emoção até. delinear um corpo. uma vida. uma história que será diferente por ser uma história pintada. sem palavras. onde os braços levantados são o próprio grito da esperança. uma esperança na tela. num traço. numa cor qualquer. vermelha ou preta. pouco importa. importa sim que o acto continue. que de aqui a pouco tudo esteja transformado num quadro. num quadro vivo. feito de silêncio. por isso insisto em mim. no próprio esquecimento das horas. de tudo quanto me rodeia e me ambienta. sei que não devo fazê-lo. mas agora é-me absolutamente necessário. daqui a pouco será uma história a desempenhar o seu papel. a insistir nos outros. a criar uma mensagem nova. eles serão obrigados também a insistir. em mim. com calma. depois com agitação. os olhos entrarão na parte inferior do quadro e num mundo complicado de linhas. de superfícies. chocá-los-á. e a principal missão aqui será o choque. por isso desenhei bocas abertas e mãos crispadas. começará então a história feita de um corpo que fala no silêncio. uns pés incrivelmente grandes. descarnados. umas pernas a cair para a terra (por isso finquei duas barras de ferro nos joelhos para poder erguer com firmeza o corpo). o resto do corpo. o peito arqueado mostra abertamente as costelas. também aqui a fome se fez sentir. os braços levantados. dificilmente ligados ao corpo. mas levantados, numa esperança feita de berros. de murros na tela. finalmente a cabeça. totalmente desmistificada. os ossos desenhados um por um. e há ainda dois olhos demasiado grandes. sim demasiados vivos para se prenderem eternamente às coisas. com duas lágrimas de dor. de raiva. de importância. de amor. terminado o quadro num fundo roxo terminou a história. rapidamente dou comigo em cima da cama a pensar por exemplo que seria preferível comunicar pessoalmente tudo isto. ser-me-ia mais fácil. mais eficaz. na impossibilidade de o fazer pintei o meu quadro. o meu drama em silêncio. compreendo agora por que pinto e consequentemente por que escrevo. no entanto podem falar-me de tudo. com berros ou não. contar-me histórias com uma com uma voz de propaganda e com o vocabulário gasto dos vendedores de banha da cobra. eu porém insisto no silêncio dos corpos.
Por Carlos Ortil
(Publicado no Suplemento Literário "Juvenil" - Diário de Lisboa, em 03 de Março de 1970)

6 comentários:

sobralfilho disse...

Carlos Ortil é o pseudónimo de António Paiva, natural do Sobral que naqueles tempos começara a desbravar caminhos no campo da pintura e da escrita. Acção esta que creio ter sido interrompida(?) pelo seu exílio voluntário no Luxemburgo nos anos (19)70, onde se encontra radicado.
- Fá-la-nos, então, dos teus (novos) silêncios...

Um abraço

Anónimo disse...

Dos quadros do Paiva, lembro-me de ter visto um recém pintado que me deixou de boca aberta.logo eu que também gostava de desenhar...Já lá vão uns 44 anos, mas ainda me lembro das cores... dos cabelos negros canalhada ,das peles trigueiras,do negro das saias das matriarcas e chapéus e barbas dos patriarcas.
É UM QUADRO COM UMA GRANDE FAMILIA DE CIGANOS ACAMPADOS NO CABECINHO DE BAIXO,Á VOLTA DUMA FOGUEIRA QUE LHES COZIA A CEIA. ATÉ OS CÃES LÁ ESTAVAM!ONDE ANDARÁ HOJE ESSE QUADRO E OUTROS?

sobralfilho disse...

Virgílio,
Ontem, falamos (o A.Paiva e eu) dessa pintura (uma das predilectas do autor). E é capaz de estar muito “perto” de ti… A pintura foi oferecida por ele ao então Pároco de Sobral, Padre José Rey Barata.
Um abraço

PS – Virgílio, o teu sobrinho Rui passou-te alguma informação? Falei com ele em Agosto e ficou de me mandar o endereço do teu site e…

Anónimo disse...

Sim Sobralfilho o quadro é belo demais ,gostava de vê-lo de novo...teria o Padre Rey deixá-lo em boas mãos? Como tinha muitos sobrinhhos(herdeiros) não será fácil saber onde para,mas vou tentar.
o meu site - da empresa - é www.pintodasneves.pt

sobralfilho disse...

Virgílio Neves,

Sempre pensei que o Padre Rey Barata tinha somente uma sobrinha.

Sendo assim, se não for fácil também poderá não ser muito difícil. Se o encontrares tira-lhe uma fotografia para prantarmos aqui no blogue...

Tomei nota do sítio.

Um abraço

sobralfilho disse...
Este comentário foi removido pelo autor.