sexta-feira, 2 de outubro de 2009

O PESSEGUEIRO DO TI-ABRANTES

(A seta indica o lugar onde estava o pessegueiro) (Barroco de Carvalho)

O PESSEGUEIRO DO TI-ABRANTES…

Ficava aqui: Rente ao Barroco das Rasas – este também um bazófias – que, logo ali à frente, desagua no Barroco de Carvalho. A sua bazófia só lhe permite levar água quando chove a rodos. Mesmo assim, parecia-me que matava muito bem a sede ao pessegueiro, que mal enjorcado, se erguia na sua margem direita, na parede e terreno rude, aparentemente, seco! O tronco, a pouco mais de meio metro do chão, partia em bifurcação rumo ao céu. E das duas pernadas, uma mais torta e desengonçada que a outra, partiam ramos sucessivos a permitir uma copa bela e frondosa, que quando floreava, a minha boca, por artes mágicas, salivava. Eu… que nem conhecia, ainda, Pavlov e o seu cão!

Comecei a andar por ali desde muito novo. O meu Carvalho fica ali ao lado e quer para levar as cabras para a outra margem do Barroco de Carvalho (que leva água durante todo o ano) quer “para as levar à água”, forçosamente tinha de passar pela Canada que fica ali de paredes meias com o Barroco das Rasas, logo, próximo do pessegueiro do Ti-Abrantes. O Ti-Abrantes era uma figura, quase lendária. Dizia-se, se bem me lembro, que esteve prestes a entrar para a Maçonaria. Quando comecei por conhecê-lo já era um homem velho, os filhos de meia-idade e netos mais velhos do que eu. Tinha a maior mercearia da Aldeia. Era uma loja com muito pouca luz. A mando do meu pai, lá ia eu comprar arroz, açúcar amarelo e petróleo para o candeeiro, e de vez quando, pela altura das malhas do centeio, um peixe de bacalhau.

O ti-Abrantes era um homem “rico”: Além do pessegueiro, da mercearia, do cavalo que tivera, tinha também um poço – “O poço do Ti-Abrantes”. Poço este que situado na Ribeira, em frente da sua mercearia, tinha peixes e trincaldos, que, por vezes, se viam azoinados, no cimo da água, por força da quantidade de sabão utilizado pelas mulheres que, debaixo da ponte do Fundo do Lugar, lavavam a roupa. De bizarro e valente tinha um pouco. Bizarro porque nunca o vi mal disposto, de sorriso maroto, debaixo do seu bigode farfalhudo e de pontas viradas para cima (um optimista por excelência), sereno e de cigarro de mortalhas na boca; e valente porque num dos mercados do Fundão, quando pretendia trocar o seu cavalo, a outra parte negociadora a pretexto de o ir experimentar nunca mais apareceu. Fora roubado. As horas iam passando. O ti-Abrantes, cheio de raiva mas confiante na sua sorte percorreu todas as ruas e arrabaldes do burgo e nada. Nem cavalo nem cavaleiro. Quando se preparava, ao cair da tarde, para o regresso, a pé, ao Sobral, pareceu-lhe ver, ao longe, o “notável negociante”, sem o seu cavalo. Vagarosamente e com astúcia, aproxima-se e consegue agarrá-lo. Deita-lhes as mãos ao pescoço, começa a apertar e a dizer “o meu cavalo ou o meu dinheiro”, “o meu cavalo ou o meu dinheiro” e cada vez apertava mais. O pessoal amigo do Sobral, solidário e receoso, murmurava, Eles ainda matam o ti-Abrantes, se não for hoje será quando um dia regressar ao mercado. E gritavam ó ti-Abrantes vamos embora, dia não são dias, e a vida é mais importante que o cavalo. Mas, o ti-Abrantes não era homem de pouca-fé. Estava ali firme que nem uma rocha. E só deixou o pescoço do homem quando um comparsa deste trouxe o cavalo de volta. E o ti-Abrantes lá continuou a ir ao àquele mercado sempre que quis, sem medo.

Ele e o meu pai eram amigos. Mas, que importava? Se ele tinha um pessegueiro, ali à mão de semear, que carregava todos os anos de pêssegos – dos que se roem – amarelos, calibre médio, com uma auréola avermelhada junto do caroço e com um sabor e cheiro únicos! Para mim, eram (e continuam a ser), sem dúvida, os melhores pêssegos do mundo. Desde que tivesse o gado em Carvalho, no tempo dos pêssegos, aquele pessegueiro era meu. Todos os dias. E ninguém sabia. Só eu!

De vez em quando, passo por lá. O pessegueiro já não existe. O cheiro e o sabor dos seus pêssegos, sim: A minha afinidade com o cão de Pavlov continua.

5 comentários:

Mariita disse...

Nada como uma boa história de vida para começar o dia e, se têm pêssegos tanto melhor!
Também gostei do regresso da playlist. Bem-haja!

sobralfilho disse...

Mariita, E os pêssegos eram mesmo bons. Mas sei que não eram só meus...haviam por lá outros pastores que também lhe teriam tomado o gosto!

O futuro do playlist é incerto: Certamente será obrigado a calar-se.

Virgílio Neves disse...

Sobralfilho esse pessegueiro era vizinho duma cerejeira que estava mesmo no cotovelo do caminho, mas nunca lhe provei os pêssegos,comestes assim o meu "quenheu". A tua sorte é que eu tinha muitos no Valminhoto. Dos de roer e de abrir. Só era pena que chegavam ao mesmo tempo das uvas (de todas as cores e sabores) e a fartura era tanta que eu não sabia por onde devia começar... nos dias de hoje, para me lembrar dessas barrigadas tenho que ir à praça e faço a semana do melão, do pêssego e da uva.
No barroco das rasas por cima do teu chão as tias do Custódio tinham uma figueira dos lampãos que eu "vistoriei" num Domingo demanhã ali por Agosto de 66, nunca tinha comido tantos e tão fresquinhos!!! E mais abaixo na Feiteira do Zé Abrantes eu e a malta habitual limpámos um dia (já lusco fusco) a cerejeira (das grossas) que está atrás do curral.
E para finalizar... no barroco seguinte ou anterior(conforme a nossa marcha) roubei em vésperas de Domingo de Ramos uns galhos de alecrim ao Ti Joaquim Tereso. Mas era com o coração aos pulos que o fazia... ai se ele me lá agarrasse. Tinha fama de ser mais ruim que o Ti Abrantes Velho não tinha?
um forte abraço para ti e continua com a tua boa prosa.Sou teu fã.
É mesmo verdade que recordar é viver... e que belas recordações.

famel disse...

A fruta comida assim tinha um sabor indescritivel...
Não haverá nunca mutações, ou qualquer outra maravilha da ciência, que consiga alcançar o sabor de uma fruta "roubada"!!!

sobralfilho disse...

Virgílio Neves,
Lembro-me vagamente dessa cerejeira. A minha fidelidade ao pessegueiro era umbilical (só roubava ali). Pêssegos de abrir e farinhentos também os tinha do lado de lá do Barroco.
Sim, pelo São Miguel a fartura de fruta era tanta que tornava a escolha difícil. Nunca me apercebi da ruindade do Ti-Joaquim Tereso e do Ti-Abrantes, será a prova provada que me portava bem!...

Famel,
Bem, diz-se que “o fruto proibido é o mais apetecido”. Mas, naquele tempo, nem sabíamos disso… Havia frutos, mesmo, especiais e únicos. Era costume dizer-se quando um fruto sobressaía pelo seu cheiro e sabor que os garfos para o enxerto da árvore mãe tinham vindo das hortas/pomares dos Engenheiros ingleses das Minas da Panasqueira! Se calhar nem era bem assim… Estou convicto, no entanto, que houve castas de fruta que se foram perdendo, por várias razões, através destes últimos tempos, especialmente de maçãs, de peras e de figos.